quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Boa Vista



Tapava ela seus olhos com negativos antigos e desgastados pelo tempo. Vestido de seda na ponta dos dedos, corria feito louca desvairada à beira daquela estrada sem fim. Terra nas mãos, apertava e os grãos iam escorrendo pelos dedos manchados. Cravava nas unhas gravetos, terra e barro. Mato que perdia de vista. Terra do vô. Brasão português e sangue azul que manchava as paredes e os portões de madeira da casa, daquela Boa Vista.Tudo que tinha ficado perdido no tempo. Nascia sempre de memórias e futuro à distância. Vestida de seda até a ponta dos dedos, os mesmos manchados sempre de terra.

Meio tarde já, dia morrendo, ela saia pra enterrar o passarinho que tinha bicado a janela da sala. Ia enterrar ele sozinha, fazer uma cruz sozinha, de gravetos enlaçados por um caule qualquer. Com o coração apertado, sepultava o frágil bichinho. Escolhia o jardim. Muitos passarinhos estão ali embaixo dos espinhos. (era criança ainda para entender porque num jardim não existiam flores e somente espinhos, mas enterrou mesmo assim). Nem era tarde, e era óbvio pra entender que a solidão dos homens e ausência das mulheres não fazia nascer, e ao menos crescer flores. A vó tinha abandonado a fazenda. E ela nunca tinha entendido o  porquê. Nem ninguém tinha. Desde então, os armários eram trancados, os jardins cheios de espinhos e os vidros arruinados pelos reflexos dos pássaros. Que bicavam, quebravam o vidro e depois morriam. 

Mais tarde ainda, a mãe saia da casa desgastada pelo tempo e arruinada pela falta de vida, para fincar os pés na terra do Jardim de espinhos. E vestida de seda até a ponta dos dedos, ela aprendeu com a mãe a cravar lá os pés também. Aprendeu a caminhar até o final da estrada, e depois voltar. Sem tempo pra voltar, apenas de ir. Ele, o tempo, parecia ir seguindo elas por detrás da brisa empoeirada. Não ditava, apenas cumpria a sua função natural do passar. Deram - se todos eles as mãos, num acordo justo e sincrônico; e ele então pode lhes mostrar a natureza justa das coisas.

Tinham gatinhos do mato no muro do estábulo, passava curiosa no meio de todas as vacas enforcadas por aquela coisa que ela ainda não sabia qual era o nome. Tentava um carinho, mas não, nunca conseguiu se aproximar deveras das vacas. Mas os bezerros ela agarrava com toda a força. E os gatinhos, ah, esses fugiam. Mas a paixão eram os cavalos, era claro que na solidão sem fim daquela terra ditada pela melancolia, os homens se sentiam menos tristes quando lidavam com eles. Eram esses a razão para toda aquela estrutura que precisava do afinco da alma. E do corpo exausto de todos os dias.

Deitava em sonhos nas folhas secas do chão úmido. Cheirava o bosque o acre e húmus. Passava o tempo, inconsumível, prosaico pelas palmas das mãos, que amassavam as flores miúdas e as jaboticabas caídas. E foi assim o prazer mais pueril que ela encontrava nos tempos de veraneio. As raízes já estavam fincadas na suas pálpebras e nos seus pés. O mesmo cheiro da terra, da mesma que cravava os dedos, faria ela lembrar, depois de 15 anos, o gosto verdadeiro da sua infância.

Descobriu então, o que era simplicidade.











0 comentários:

Postar um comentário

Artigos relacionados

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...