quarta-feira, 22 de junho de 2011

Persona – faces de Bergman



Por Ana Carolina Meirelles

Intro (dução)


Suécia, 1966. Ingmar Bergman lança Persona. Película reconhecida pela crítica cinematográfica como obra- prima do diretor sueco. O filme surpreende, sobretudo, pelo seu caráter enigmático. Não podemos afirmar com uma certeza absoluta sobre a sua principal abordagem, sobre seu âmago. Para sentir, mais do que simplesmente assistir a Persona, é necessária à abdicação da espera por uma significação imediata revelada.

As imagens falam de alma pra alma, e fogem do campo intelectual. Talvez para sentir a película, você precise voltar a ela duas ou três vezes. Susan Sontag, em análise feita sobre o longa, nos diz que para compreender Persona, o espectador deve ultrapassar o ponto de vista psicológico, já que o filme assume uma posição além da psicologia – assim como, num sentido análogo, além do erotismo. (Sontag, 1987, p. 127-8).

A posição do espectador além da psicologia a que se refere Sontag se faz necessária na medida em que nos deparamos desde a abertura do filme até aos créditos finais, com sequências de imagens enigmáticas, que nos despertam os sentidos mais curiosos e sensações variadas diante do desconhecido tão escandaloso. Persona não é um filme linear, e eu diria que também não é pensado de maneira elíptica; de modo que queira retornar a ideia expressa nos seus primeiros instantes.

O filme é uma construção de sentido para além do intelecto, e por isso Persona foi mais longe do que muitas outras produções já vistas na história do cinema. Ele representa o cinema cru, a metalinguagem do cinema, aspectos que nos fazem tecer as pontes que ligam a realidade à ficção e a barreira que nos separa do Outro. E ainda, como SER pelos olhos do Outro.

O desconhecido escandaloso de Bergman é um convite à análise profunda da psique humana, do simbolismo, dos papéis desempenhados por nossas diversas “personas” no nosso íntimo e no nosso convívio social. E neste filme, rodado por 82 minutos e a última película em preto e branco filmada pelo diretor, podemos ter o deleite de apreciar a história contada pelas faces e pensamentos transfigurados nas personas de Alma (Bibi Andersson) e Elisabeth Vogler (Liv Ullmann).


História Contada ( Sinopse)




Após a encenação da peça grega Electra, a atriz Elizabeth Vogler tem uma alteração no seu comportamento habitual. Elisabeth deixa de falar durante a representação teatral. Assim, é internada em uma clínica psiquiátrica pela demonstração de apatia ao seu entorno, as pessoas, ao filho e ao próprio teatro.

A médica responsável por Elizabeth encarrega à enfermeira Alma de seu tratamento. A atriz não está doente, apenas opta pelo silêncio. Percebendo que o hospital não seria o melhor lugar para a recuperação da senhora Vogler, a médica aconselha que Alma e Elizabeth passem uma temporada em sua casa de praia, em uma ilha isolada. A partir daí, as duas mulheres desenvolvem uma intimidade crescente.

O processo inverte-se, Elizabeth parece estar aos cuidados de Alma, e esta constante troca de identidades, desencadeia o que, talvez, seja o cerne da abordagem de Persona: até que ponto somos nós e até que ponto somos, adentramos e ou interferimos no outro? “Posso ser eu mesma duas pessoas, ao mesmo tempo?” Pergunta Alma a Elizabeth (...)

Mesmo o silêncio de Elizabeth não impossibilitou que as duas mulheres passassem por um processo de identificação e trocas; a relação estava cada dia mais forte até que Alma se sente traída por Elizabeth e os papéis se invertem. Por fim, as duas voltam da ilha e a atriz retoma sua carreira profissional, assim como Alma ao seu trabalho na clínica psiquiátrica.


Pequenas tecelagens



Persona caracteriza-se pelas nuances insinuantes e bem delineadas por Bergman do preto e do branco. A iluminação, o contraste e a textura relacionados à composição perfeita da imagem, nos induzem a pensar sobre a sua veracidade, e até nos questionar sobre o que é a realidade, o que é a ilusão, e como elas estão presentes na linguagem cinematográfica. A ausência de cores e os nuances de cinza na película distanciam às personagens de um espaço de imaginação e fantasia, do colorido do mundo.

A ausência de cores, assim, aproxima- se os da frieza da realidade, do choque com o mundo cru, sem cortes, e assim, em Persona, transfigurados para o cinema. Algumas imagens reais, representadas no filme, como a fotografia do menino judeu de mãos para cima em Varsóvia, assim como a imagem vista por Elizabeth na tv, de um Bonzo vietnamita sendo queimado como uma tocha de fogo choca a personagem da mesma maneira que nos chocam na “nossa” vida real.

Em outras palavras e entre tantos aspectos singulares presentes na película, talvez uma das intenções de Bergman foi nos atentar para o fato de que o cinema é apenas uma linguagem para expressar nossas diversas perspectivas e visões sobre o mundo. No entanto, sem nos esquecer de que àquilo é apenas uma representação, uma ilusão diante dos nossos olhos.

O cinema no cinema de Bergman está imbuído de teatralidade, em Persona isso é bem claro, são diversas às alusões feitas ao universo das representações. O próprio nome “Persona” significa máscara usada pelos atores durante as tragédias clássicas. Portanto, é no campo das representações, da verdade, e ainda vou me arriscar, da agonia como ser humano incrédulo do silêncio de Deus perante sua criação, que Bergman constrói as personagens Alma e Elizabeth. Compartilho da opinião de Sontag, quando nos diz que podemos entender a relação das duas personagens como o sujeito que é corrompido (Elizabeth) e a alma que é ingênua (Alma) e é colocada diante do ser corrompido.

Elizabeth é uma atriz que está em busca da verdade, e por desempenhar seus vários papéis e não se encontrar em nenhum deles quer calar a persona que é apresentada no contato com o outro e dar voz a persona que pode ser encontrada na sua solidão. Por isso ela resolve se calar e o silêncio é o seu único meio de cessar os ruídos que a impedem de voltar à Elizabeth in natura.

Quando se aproxima de Alma, uma personagem que não conseguiu dar voz aos seus outros “eus”, Elizabeth sente à vontade para escutar e em paz por não precisar desempenhar nenhum papel, e é neste momento, que mesmo cessando os seus outros “eus”, ela não consegue deixar de ser. Então, a partir do momento da escuta por Elizabeth, e da fala por Alma, há uma forte relação entre às duas e uma fusão de identidades que parece ser inevitável e inerente à vontade da alma e da consciência; e assim elas se transformam em apenas uma persona. No filme, retratado pela junção das duas faces.

Bergman talvez questione em Persona, para além de outros focos, os nossos vários papéis desempenhados durante a vida como condição intrínseca à existência. Talvez o fardo mais pesado seja carregar esses vários papéis, desempenha –los e suporta – los. Somos, pois, indivíduos fartos de muitos pesos, e sem o direito à decisão de escolha. Podemos escolher os papéis, mas não podemos escolher abster de tê-los.


Outras tecelagens

As imagens aparentemente desconexas no começo e no final da película, aranha caranguejeira, prego sendo martelado na mão de uma pessoa, menino com óculos grandes, idosos com olhos fechados (eles estavam mortos?), esqueleto, sequência de imagens em um projetor... etc, são chamadas por Bergman de poema visual. Alguns críticos defendem que a ideia partiu para representar o nascimento da situação na qual nasceu o filme. Bergman estava hospitalizado quando começou a fazer o roteiro de Persona para se distrair. Na altura, ele ainda era diretor da Dramaten, uma companhia de teatro. No entanto, para, além disso, vejo nas imagens um convite às nossas inquietações latentes, ao incitamento do nosso inconsciente, para que ele venha “à tona”, antes do começo, propriamente, da história da trama. Na passagem veloz das imagens sequenciais, em um primeiro momento talvez não consigamos estabelecer um fio condutor com as outras cenas que vem após. De qualquer maneira, o nosso sistema cognitivo guarda essas imagens, e depois nos provoca sensações mais “verdadeiras” à percepção do resto do filme. Sendo assim, acredito que Bergman pensou nas imagens para nos preparar para enfrentar o duelo de personalidades, que muitas vezes foge do nosso consciente e está enterrado, guardado ou adormecido nas profundezas do nosso inconsciente. Neste ponto, é possível tecer a relação entre Persona e a psicologia de Jung. O objetivo é apenas assinalar esta possível ligação entre o filme e a “persona” do psicólogo. Nesse sentido, Jung trata das sombras, que são nossas memórias, experiências passadas, tendências e desejos, que muitas vezes não emergem no nosso consciente. Assim, Jung também adentra ao universo potente do simbólico, que é evidente na película enigmática de Bergman e por isso, um tanto quanto fascinante.

Persona tem muitos mistérios. Sabemos que o texto do filme não é uma improvisação, embora às vezes nos tencione a crer que sim. Bergman nos diz que foi rigorosamente concebido. São os detalhes em Persona que o deixa ainda mais indecifrável e suscetível a infindas teorizações. Pois continuo a teorizar em outra altura, pois cá já está bom!

3 comentários:

cacau itaborahy disse...

hum... que texto bom de ler... mesmo sendo de uma coisa tão "complexa"... e pra mim tão boa... Bergaman e o seu Persona...

Ana Carolina Meirelles disse...

Ei Cacau! Massa que vc gostou de ler! É importante pra mim como jornalista e aspirante à crítica de cinema. haha. Gostas do filme entonces? Um bacho
=)

Thiago Vilela disse...

Gostei muito do seu texto carol. Pra mim o ponto central é exatamente esta indagação sobre "até que ponto somos nós e até que ponto somos, adentramos e ou interferimos no outro?".

Mas eu quero assistir ainda o filme mais vezes, preciso 'sentí-lo' de verdade, uma vez só é muito pouco para absorver tanta informação.

beijo!

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